Carta Apostólica Admirabile Signum do Santo Pe. Francisco
Sobre o Significado de Presépio


1. Pressupostos
Pressuposto – como a palavra diz – é algo que, ao escrever, se supõe conhecido (e aceito), embora quase nunca apareça. Aqui apresentamos dois tipos de pressupostos, bíblicos e sociais

1.1. Pressupostos bíblicos
• São muitos os textos bíblicos que garantem ser Deus o legítimo dono da terra. Exemplo: “Do Senhor é a terra e o que nela existe, o mundo e seus habitantes” (Salmo 24,1).
• Deus, o dono da terra, não a retém para si, mas a entrega aos homens: “O céu é o céu do Senhor, mas a terra, ele a deu para os filhos de Adão” (Salmo 115,16). O homem é gerente da terra, embaixador de Deus, administrador da terra.
• Na visão da segunda narrativa da criação (Gênesis 2,4b-25) a terra é um paraíso, um jardim, e o homem é nomeado seu guardião: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e guardar” (2,15).
• Na primeira narrativa da criação (Gênesis 1,1-2a), afirma-se que toda a criação saída das mãos de Deus é boa. Isso é dito repetindo 7 vezes “bom”.
• Para não esgotar o solo e socorrer os pobres, criou-se no tempo do Antigo Testamento o ano sabático. Lv 25,3-5: “Durante seis anos semearás o teu campo... Mas no sétimo ano a terra terá seu repouso sabático... não semearás... não podarás... não ceifarás”. Cf. também 19,9-10.
• O último livro da Bíblia – Apocalipse – aponta para uma realidade totalmente transformada: a nova terra, uma espécie de paraíso terrestre. Dele nos aproximamos a cada dia. Essa realidade nova – chamada de Nova Jerusalém – é a esperança que nos ajuda a caminhar (21,1-22,5).

1.2. Pressupostos sociais
São mais conhecidos porque constituem a preocupação constante para nossos dias. Por isso elencamos apenas alguns:

• O aquecimento global. Nosso planeta está esquentando sempre mais e as consequências são imprevisíveis;
• O desmatamento está desertificando vertiginosamente a terra. Ao contrário de Gênesis 1, conseguimos devolver ao caos a terra que ao criá-la, Deus a havia tirado do caos;
• A crescente falta de água. Esse elemento vital está desaparecendo, e sua ausência gera morte.

Esses pressupostos estão por trás da exortação apostólica pós-sinodal QUERIDA AMAZÔNIA, e nos toca diretamente, pois de acordo com Gênesis 1, adam (= homem, ser humano, a humanidade, Adão) é plasmado de adamá (= solo fértil, terra de plantio). Assim, quando viu Eva, Adão exclamou: “Ela é osso dos meus ossos e carne de minha carne”, do mesmo modo podemos dizer-nos: “Eu sou terra dessa terra, sou pó desse pó”.

2. A exortação apostólica pós sinodal QUERIDA AMAZÔNIA de Francisco
O papa Francisco inovou até na forma de tratamento. Em vez de usar a linguagem “oficial” e “diplomática”, elaborou a Exortação em linguagem coloquial de alguém que fala com velha amiga, a Amazônia.

A Exortação, cuja gestação começou há anos e amadureceu no recente Sínodo, se compõe substancialmente de quatro capítulos. 1. Um sonho social; 2. Um sonho cultural; 3. Um sonho ecológico; 4. Um sonho eclesial.

O fio condutor é o sonhar uma realidade nova. Como disseram profetas e poetas de ontem e de hoje: “Sonho que se sonha sozinho é apenas um sonho. Sonho que se sonha junto é o começo da realidade”. O n. 7 sintetiza o documento e cada um dos 4 capítulos:

  • Sonho com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.
  • Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
  • Sonho com uma Amazônia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
  • Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos.
Você pode ler integralmente a Exortação acessando: este link

Pe. José Bortolini.

Carta Apostólica Admirabile Signum do Santo Pe. Francisco
Sobre o Significado de Presépio


1. O SINAL ADMIRÁVEL do Presépio, muito amado pelo povo cristão, não cessa de suscitar maravilha e enlevo. Representar o acontecimento da natividade de Jesus equivale a anunciar, com simplicidade e alegria, o mistério da encarnação do Filho de Deus. De facto, o Presépio é como um Evangelho vivo que transvaza das páginas da Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo que contemplamos a representação do Natal, somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho, atraídos pela humildade d’Aquele que Se fez homem a fim de Se encontrar com todo o homem, e a descobrir que nos ama tanto, que Se uniu a nós para podermos, também nós, unir-nos a Ele. Com esta Carta, quero apoiar a tradição bonita das nossas famílias prepararem o Presépio, nos dias que antecedem o Natal, e também o costume de o armarem nos lugares de trabalho, nas escolas, nos hospitais, nos estabelecimentos prisionais, nas praças… Trata-se verdadeiramente dum exercício de imaginação criativa, que recorre aos mais variados materiais para produzir, em miniatura, obras-primas de beleza. Aprende-se em criança, quando o pai e a mãe, juntamente com os avós, transmitem este gracioso costume, que encerra uma rica espiritualidade popular. Almejo que esta prática nunca desapareça; mais, espero que a mesma, onde porventura tenha caído em desuso, se possa redescobrir e revitalizar.

2. A origem do Presépio fica-se a dever, antes de mais nada, a alguns pormenores do nascimento de Jesus em Belém, referidos no Evangelho. O evangelista Lucas limita-se a dizer que, tendo-se completado os dias de Maria dar à luz, «teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (2, 7). Jesus é colocado numa manjedoura, que, em latim, se diz praesepium, donde vem a nossa palavra presépio. Ao entrar neste mundo, o Filho de Deus encontra lugar onde os animais vão comer. A palha torna-se a primeira enxerga para Aquele que Se há de revelar como «o pão vivo, o que desceu do céu» (Jo6, 51). Uma simbologia, que já Santo Agostinho, a par doutros Padres da Igreja, tinha entrevisto quando escreveu: «Deitado numa manjedoura, torna-Se nosso alimento».[1]Na realidade, o Presépio inclui vários mistérios da vida de Jesus, fazendo-os aparecer familiares à nossa vida diária. Passemos agora à origem do Presépio, tal como nós o entendemos. A mente leva-nos a Gréccio, na Valada de Rieti; aqui se deteve São Francisco, provavelmente quando vinha de Roma onde recebera, do Papa Honório III, a aprovação da sua Regra em 29 de novembro de 1223. Aquelas grutas, depois da sua viagem à Terra Santa, faziam-lhe lembrar de modo particular a paisagem de Belém. E é possível que, em Roma, o «Poverello» de Assis tenha ficado encantado com os mosaicos, na Basílica de Santa Maria Maior, que representam a natividade de Jesus e se encontram perto do lugar onde, segundo uma antiga tradição, se conservam precisamente as tábuas da manjedoura. As Fontes Franciscanas narram, de forma detalhada, o que aconteceu em Gréccio. Quinze dias antes do Natal, Francisco chamou João, um homem daquela terra, para lhe pedir que o ajudasse a concretizar um desejo: «Quero representar o Menino nascido em Belém, para de algum modo ver com os olhos do corpo os incómodos que Ele padeceu pela falta das coisas necessárias a um recém-nascido, tendo sido reclinado na palha duma manjedoura, entre o boi e o burro».[2]Mal acabara de o ouvir, o fiel amigo foi preparar, no lugar designado, tudo o que era necessário segundo o desejo do Santo. No dia 25 de dezembro, chegaram a Gréccio muitos frades, vindos de vários lados, e também homens e mulheres das casas da região, trazendo flores e tochas para iluminar aquela noite santa. Francisco, ao chegar, encontrou a manjedoura com palha, o boi e o burro. À vista da representação do Natal, as pessoas lá reunidas manifestaram uma alegria indescritível, como nunca tinham sentido antes. Depois o sacerdote celebrou solenemente a Eucaristia sobre a manjedoura, mostrando também deste modo a ligação que existe entre a Encarnação do Filho de Deus e a Eucaristia. Em Gréccio, naquela ocasião, não havia figuras; o Presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes.[3] Assim nasce a nossa tradição: todos à volta da gruta e repletos de alegria, sem qualquer distância entre o acontecimento que se realiza e as pessoas que participam no mistério.O primeiro biógrafo de São Francisco, Tomás de Celano, lembra que naquela noite, à simples e comovente representação se veio juntar o dom duma visão maravilhosa: um dos presentes viu que jazia na manjedoura o próprio Menino Jesus. Daquele Presépio do Natal de 1223, «todos voltaram para suas casas cheios de inefável alegria»[4].

3. Com a simplicidade daquele sinal, São Francisco realizou uma grande obra de evangelização. O seu ensinamento penetrou no coração dos cristãos, permanecendo até aos nossos dias como uma forma genuína de repropor, com simplicidade, a beleza da nossa fé. Aliás, o próprio lugar onde se realizou o primeiro Presépio sugere e suscita estes sentimentos. Gréccio torna-se um refúgio para a alma que se esconde na rocha, deixando-se envolver pelo silêncio. Por que motivo suscita o Presépio tanto enlevo e nos comove? Antes de mais nada, porque manifesta a ternura de Deus. Ele, o Criador do universo, abaixa-Se até à nossa pequenez. O dom da vida, sempre misterioso para nós, fascina-nos ainda mais ao vermos que Aquele que nasceu de Maria é a fonte e o sustento de toda a vida. Em Jesus, o Pai deu-nos um irmão, que vem procurar-nos quando estamos desorientados e perdemos o rumo, e um amigo fiel, que está sempre ao nosso lado; deu-nos o seu Filho, que nos perdoa e levanta do pecado. Armar o Presépio em nossas casas ajuda-nos a reviver a história sucedida em Belém. Naturalmente os Evangelhos continuam a ser a fonte, que nos permite conhecer e meditar aquele Acontecimento; mas, a sua representação no Presépio ajuda a imaginar as várias cenas, estimula os afetos, convida a sentir-nos envolvidos na história da salvação, contemporâneos daquele evento que se torna vivo e atual nos mais variados contextos históricos e culturais.

De modo particular, desde a sua origem franciscana, o Presépio é um convite a «sentir», a «tocar» a pobreza que escolheu, para Si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para O seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até à Cruz, e um apelo ainda a encontrá-Lo e servi-Lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados (cf. Mt 25, 31-46).

4. Gostava agora de repassar os vários sinais do Presépio para apreendermos o significado que encerram. Em primeiro lugar, representamos o céu estrelado na escuridão e no silêncio da noite. Fazemo-lo não apenas para ser fiéis às narrações do Evangelho, mas também pelo significado que possui. Pensemos nas vezes sem conta que a noite envolve a nossa vida. Pois bem, mesmo em tais momentos, Deus não nos deixa sozinhos, mas faz-Se presente para dar resposta às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência: Quem sou eu? Donde venho? Por que nasci neste tempo? Por que amo? Por que sofro? Por que hei de morrer? Foi para dar uma resposta a estas questões que Deus Se fez homem. A sua proximidade traz luz onde há escuridão, e ilumina a quantos atravessam as trevas do sofrimento (cf. Lc 1, 79). Merecem também uma referência as paisagens que fazem parte do Presépio; muitas vezes aparecem representadas as ruínas de casas e palácios antigos que, nalguns casos, substituem a gruta de Belém tornando-se a habitação da Sagrada Família. Parece que estas ruínas se inspiram na Legenda Áurea, do dominicano Jacopo de Varazze (século XIII), onde se refere a crença pagã segundo a qual o templo da Paz, em Roma, iria desabar quando desse à luz uma Virgem. Aquelas ruínas são sinal visível sobretudo da humanidade decaída, de tudo aquilo que cai em ruína, que se corrompe e definha. Este cenário diz que Jesus é a novidade no meio dum mundo velho, e veio para curar e reconstruir, para reconduzir a nossa vida e o mundo ao seu esplendor originário.

5. Uma grande emoção se deveria apoderar de nós, ao colocarmos no Presépio as montanhas, os riachos, as ovelhas e os pastores! Pois assim lembramos, como preanunciaram os profetas, que toda a criação participa na festa da vinda do Messias. Os anjos e a estrela-cometa são o sinal de que também nós somos chamados a pôr-nos a caminho para ir até à gruta adorar o Senhor. «Vamos a Belém ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer» (Lc 2, 15): assim falam os pastores, depois do anúncio que os anjos lhes fizeram. É um ensinamento muito belo, que nos é dado na simplicidade da descrição. Ao contrário de tanta gente ocupada a fazer muitas outras coisas, os pastores tornam-se as primeiras testemunhas do essencial, isto é, da salvação que nos é oferecida. São os mais humildes e os mais pobres que sabem acolher o acontecimento da Encarnação. A Deus, que vem ao nosso encontro no Menino Jesus, os pastores respondem, pondo-se a caminho rumo a Ele, para um encontro de amor e de grata admiração. É precisamente este encontro entre Deus e os seus filhos, graças a Jesus, que dá vida à nossa religião e constitui a sua beleza singular, que transparece de modo particular no Presépio.

6. Nos nossos Presépios, costumamos colocar muitas figuras simbólicas. Em primeiro lugar, as de mendigos e pessoas que não conhecem outra abundância a não ser a do coração. Também estas figuras estão próximas do Menino Jesus de pleno direito, sem que ninguém possa expulsá-las ou afastá-las dum berço de tal modo improvisado que os pobres, ao seu redor, não destoam absolutamente. Antes, os pobres são os privilegiados deste mistério e, muitas vezes, aqueles que melhor conseguem reconhecer a presença de Deus no meio de nós. No Presépio, os pobres e os simples lembram-nos que Deus Se faz homem para aqueles que mais sentem a necessidade do seu amor e pedem a sua proximidade. Jesus, «manso e humilde de coração» (Mt 11, 29), nasceu pobre, levou uma vida simples, para nos ensinar a identificar e a viver do essencial. Do Presépio surge, clara, a mensagem de que não podemos deixar-nos iludir pela riqueza e por tantas propostas efémeras de felicidade. Como pano de fundo, aparece o palácio de Herodes, fechado, surdo ao jubiloso anúncio. Nascendo no Presépio, o próprio Deus dá início à única verdadeira revolução que dá esperança e dignidade aos deserdados, aos marginalizados: a revolução do amor, a revolução da ternura. Do Presépio, com meiga força, Jesus proclama o apelo à partilha com os últimos como estrada para um mundo mais humano e fraterno, onde ninguém seja excluído e marginalizado. Muitas vezes, as crianças (mas os adultos também!) gostam de acrescentar, no Presépio, outras figuras que parecem não ter qualquer relação com as narrações do Evangelho. Contudo esta imaginação pretende expressar que, neste mundo novo inaugurado por Jesus, há espaço para tudo o que é humano e para toda a criatura. Do pastor ao ferreiro, do padeiro aos músicos, das mulheres com a bilha de água ao ombro às crianças que brincam… tudo isso representa a santidade do dia a dia, a alegria de realizar de modo extraordinário as coisas de todos os dias, quando Jesus partilha connosco a sua vida divina.

7. A pouco e pouco, o Presépio leva-nos à gruta, onde encontramos as figuras de Maria e de José. Maria é uma mãe que contempla o seu Menino e O mostra a quantos vêm visitá-Lo. A sua figura faz pensar no grande mistério que envolveu esta jovem, quando Deus bateu à porta do seu coração imaculado. Ao anúncio do anjo que Lhe pedia para Se tornar a mãe de Deus, Maria responde com obediência plena e total.

As suas palavras – «eis a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38) – são, para todos nós, o testemunho do modo como abandonar-se, na fé, à vontade de Deus. Com aquele «sim», Maria tornava-Se mãe do Filho de Deus, sem perder – antes, graças a Ele, consagrando – a sua virgindade. N’Ela, vemos a Mãe de Deus que não guarda o seu Filho só para Si mesma, mas pede a todos que obedeçam à palavra d’Ele e a ponham em prática (cf. Jo 2, 5). Ao lado de Maria, em atitude de quem protege o Menino e sua mãe, está São José. Geralmente, é representado com o bordão na mão e, por vezes, também segurando um lampião. São José desempenha um papel muito importante na vida de Jesus e Maria. É o guardião que nunca se cansa de proteger a sua família. Quando Deus o avisar da ameaça de Herodes, não hesitará a pôr-se em viagem emigrando para o Egito (cf. Mt 2, 13-15). E depois, passado o perigo, reconduzirá a família para Nazaré, onde será o primeiro educador de Jesus, na sua infância e adolescência. José trazia no coração o grande mistério que envolvia Maria, sua esposa, e Jesus; homem justo que era, sempre se entregou à vontade de Deus e pô-la em prática.

8. O coração do Presépio começa a palpitar, quando colocamos lá, no Natal, a figura do Menino Jesus. Assim Se nos apresenta Deus, num menino, para fazer-Se acolher nos nossos braços. Naquela fraqueza e fragilidade, esconde o seu poder que tudo cria e transforma. Parece impossível, mas é assim: em Jesus, Deus foi criança e, nesta condição, quis revelar a grandeza do seu amor, que se manifesta num sorriso e nas suas mãos estendidas para quem quer que seja. O nascimento duma criança suscita alegria e encanto, porque nos coloca perante o grande mistério da vida. Quando vemos brilhar os olhos dos jovens esposos diante do seu filho recém-nascido, compreendemos os sentimentos de Maria e José que, olhando o Menino Jesus, entreviam a presença de Deus na sua vida. «De facto, a vida manifestou-se» (1 Jo 1, 2): assim o apóstolo João resume o mistério da Encarnação. O Presépio faz-nos ver, faz-nos tocar este acontecimento único e extraordinário que mudou o curso da história e a partir do qual também se contam os anos, antes e depois do nascimento de Cristo. O modo de agir de Deus quase cria vertigens, pois parece impossível que Ele renuncie à sua glória para Se fazer homem como nós. Que surpresa ver Deus adotar os nossos próprios comportamentos: dorme, mama ao peito da mãe, chora e brinca, como todas as crianças. Como sempre, Deus gera perplexidade, é imprevisível, aparece continuamente fora dos nossos esquemas. Assim o Presépio, ao mesmo tempo que nos mostra Deus tal como entrou no mundo, desafia-nos a imaginar a nossa vida inserida na de Deus; convida a tornar-nos seus discípulos, se quisermos alcançar o sentido último da vida.

9. Quando se aproxima a festa da Epifania, colocam-se no Presépio as três figuras dos Reis Magos. Tendo observado a estrela, aqueles sábios e ricos senhores do Oriente puseram-se a caminho rumo a Belém para conhecer Jesus e oferecer-Lhe de presente ouro, incenso e mirra. Estes presentes têm também um significado alegórico: o ouro honra a realeza de Jesus; o incenso, a sua divindade; a mirra, a sua humanidade sagrada que experimentará a morte e a sepultura. Ao fixarmos esta cena no Presépio, somos chamados a refletir sobre a responsabilidade que cada cristão tem de ser evangelizador. Cada um de nós torna-se portador da Boa-Nova para as pessoas que encontra, testemunhando a alegria de ter conhecido Jesus e o seu amor; e fá-lo com ações concretas de misericórdia. Os Magos ensinam que se pode partir de muito longe para chegar a Cristo: são homens ricos, estrangeiros sábios, sedentos de infinito, que saem para uma viagem longa e perigosa e que os leva até Belém (cf. Mt 2, 1-12). À vista do Menino Rei, invade-os uma grande alegria. Não se deixam escandalizar pela pobreza do ambiente; não hesitam em pôr-se de joelhos e adorá-Lo. Diante d’Ele compreendem que Deus, tal como regula com soberana sabedoria o curso dos astros, assim também guia o curso da história, derrubando os poderosos e exaltando os humildes. E de certeza, quando regressaram ao seu país, falaram deste encontro surpreendente com o Messias, inaugurando a viagem do Evangelho entre os gentios.

10. Diante do Presépio, a mente corre de bom grado aos tempos em que se era criança e se esperava, com impaciência, o tempo para começar a construí-lo. Estas recordações induzem-nos a tomar consciência sempre de novo do grande dom que nos foi feito, transmitindo-nos a fé; e ao mesmo tempo, fazem-nos sentir o dever e a alegria de comunicar a mesma experiência aos filhos e netos. Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-la cada ano. O que conta, é que fale à nossa vida. Por todo o lado e na forma que for, o Presépio narra o amor de Deus, o Deus que Se fez menino para nos dizer quão próximo está de cada ser humano, independentemente da condição em que este se encontre. Queridos irmãos e irmãs, o Presépio faz parte do suave e exigente processo de transmissão da fé. A partir da infância e, depois, em cada idade da vida, educa-nos para contemplar Jesus, sentir o amor de Deus por nós, sentir e acreditar que Deus está connosco e nós estamos com Ele, todos filhos e irmãos graças àquele Menino Filho de Deus e da Virgem Maria. E educa para sentir que nisto está a felicidade. Na escola de São Francisco, abramos o coração a esta graça simples, deixemos que do encanto nasça uma prece humilde: o nosso «obrigado» a Deus, que tudo quis partilhar connosco para nunca nos deixar sozinhos.

Dado em Gréccio, no Santuário do Presépio, a 1 de dezembro de 2019, sétimo do meu pontificado. Franciscus

[1] Santo Agostinho, Sermão 189, 4. [2] Tomás de Celano, Vita Prima, 85: Fontes Franciscanas, 468. [3] Cf. ibid., 85: o. c., 469. [4] Ibid., 86: o. c., 470.

Abril - 2019

Páscoa cristã: chave positiva de leitura para a história

Em nossos dias ainda há pessoas que leem a história de forma trágica e se conformam com essa visão dos fatos, como se não houvesse saída. Isso faz lembrar a lenda de Sísifo, da mitologia grega antiga. Narra-se que foi punido e obrigado a cumprir incessantemente a punição. Ela consistia em rolar montanha acima uma enorme pedra. Quando estava para chegar ao alto da montanha, a pedra sempre lhe escapava e ele era obrigado a recomeçar, mesmo sabendo que não teria êxito.

Há pessoas que se assemelham a Sísifo quando se trata de ler a história, pois a veem como algo cíclico, ou seja, a história é o palco onde os acontecimentos se repetem. Essa é a leitura cíclica, oposta à leitura linear. A leitura cíclica da história é como a pressão arterial, que mata em silêncio. Frustra toda expectativa de bem, progresso e êxito. Por causa dela as pessoas se tornam vivos-mortos.

A Páscoa de Jesus – que é nossa também – rompe com esse circuito fechado e projeta nova luz nos acontecimentos. Sua vitória sobre a morte arrebenta as amarras da rotina e da fadiga inútil. No capítulo 5 do Apocalipse se diz que o Cordeiro venceu a morte, e os efeitos dessa vitória não podem ser cancelados. A vitória da ressurreição é irrefreável: ninguém consegue deter seus efeitos, de sorte que quem deseja ter uma visão linear da história, é na Páscoa de Jesus e nossa que deve buscar força para viver como ressuscitado.

Olhe para sua vida e tente descobrir que tipo de leitura você faz da história: cíclica ou linear? Você lê os acontecimentos da vida com o mito de Sísifo ou com a luz da Pascoa de Jesus, o Cordeiro vencedor?

Pe. José Bortolini

Você quer saber mais sobre a Pascoa? Então leia meu livrinho publicado pela Editora Santuário: Páscoa cristã: mãe e cabeça de todas as festas cristãs.



Março - 2019

São José e a Quaresma

A Campanha da Fraternidade 2019, celebrada durante a Quaresma, tem como tema “Fraternidade e políticas públicas”. São José, um dos poucos santos celebrados duas vezes ao longo do ano, tem sua festa maior no dia 19 de março, na qual é proclamado Patrono Universal da Igreja. O que há em comum entre estas três realidades: São José, Quaresma e Campanha da Fraternidade?

Vamos olhar para José, descendente de Davi. Alguns afirmam que o Novo Testamento fala pouco dele. Será? Se olharmos a quantidade de palavras, fala-se pouco, mas se examinarmos a densidade das palavras e sua profundidade, o Novo Testamento diz tudo acerca de José.

Mateus é quem mais se ocupa com o pai adotivo de Jesus, que vive verdadeiro drama existencial: Maria, sua noiva, está grávida, e ele tem certeza de que o bebê não é filho dele.

Muitos – também nós? – diante disso, botaria a boca no trombone, denunciaria o adultério da noiva, e ela seria apedrejada. Tudo segundo a Lei. José tem uma saída diferente: separa-se em silêncio, de sorte que quem vê as coisas de fora põe nele a culpa, acusa-o de abandono do lar etc. Em vez de prejudicar Maria, carrega a responsabilidade pelo ato.

Mateus chama José de “justo”, e nós acabamos de ver o que para ele significa ser justo, o que é justiça. Com essa qualificação, Mateus põe José lado a lado com os dois personagens mais importantes do Antigo Testamento: Davi, passado à história como o rei justo; Abraão, que acreditou em Deus e por isso foi considerado justo. Bastava isso. Bastava empunhar bandeira semelhante a essa para que se afirme a seriedade com a qual uma pessoa vive o tempo da Quaresma.

José se caracteriza como trabalhador, e em outras festividades litúrgicas nas quais comparece (por exemplo a solenidade da Sagrada Família), é um retirante que foge da perseguição do rei, indo morar – em qual casa? – no estrangeiro.

Trabalho e moradia, duas metas de políticas públicas que não podem ser esquecidas ou abandonadas. Deus nos ajude a vivermos como São José, com trabalho e moradia.

Pe. José Bortolini


Dezembro - 2018

Espiritualidade do Ciclo do Natal

Dá-se o nome de Ciclo do Natal ao período litúrgico que vai do 1º domingo do Advento à festa do Batismo do Senhor. Esse ciclo compreende dois tempos, Advento e Natal. Tomados juntos, formando unidade, esses dois tempos se tornam mais interessantes do que tomá-los isoladamente.

Os quatro domingos que antecedem o Natal compõem o Tempo do Advento (palavra que significa “vinda”, “chegada”). Neles comemoramos duas realidades do nosso itinerário de fé, fundadas na memória e na expectativa. Na memória celebramos o evento histórico do nascimento de Jesus, nosso Salvador. Nessa vertente, o Advento deságua no Natal. Porém, na perspectiva de memória de algo passado, à medida que avançamos na história nos afastamos sempre mais do evento histórico. Por isso, a memória deve ser ativa, ou seja, estimular-nos a reviver o nascimento do Senhor como algo que acontece no presente.

Como expectativa, somos levados a vivenciar a segunda vinda do Senhor Jesus no fim dos tempos, na esperança que nos faz erguer a cabeça, pois está próxima a nossa libertação. Nesse sentido, à medida que caminhamos, estamos nos aproximando sempre mais do retorno do Senhor no final dos tempos. E para que essa aproximação não nos encha de medo, vamos praticar o bem, a solidariedade e difundir a paz.

Memória e expectativa são duas colunas que sustentam a espiritualidade do Ciclo do Natal. Elas nos sugerem muitas coisas em torno do eixo que se chama vida. Bela, porém frágil, ainda mais fragilizada pela ausência da sensibilidade que nos torna solidários com ela.

A vida é frágil no Natal. Uma família em viagem, um bebê que nasce fora de casa, “pois não havia lugar para eles na sala”. Vida frágil na vertente da

expectativa, e mais ainda fragilizada pela indiferença das pessoas e pelas inúmeras situações de pobreza, carência de recursos.

Neste ano, nossa Paróquia tomou uma iniciativa que faz ver espiritualidade e solidariedade andando juntas e se fundindo. Trata-se de ajudar o Amparo Maternal da capital, verdadeiro lar para as gestantes que não querem ou não têm condições de enfrentar gestação e parto. Ajudando com toda espécie de socorro: dinheiro, alimentos não perecíveis, materiais de higiene, estaremos praticando a autêntica espiritualidade do Ciclo do Natal.

Como diz a canção: “Então é Natal, o que a gente fez? / O ano termina, e começa outra vez / Então é Natal, a festa Cristã / Do velho e do novo, o amor como um todo /Então bom Natal, e um ano novo também /Que seja feliz quem, souber o que é o bem”.

Pe. José Bortolini


Outubro - 2018

Um mês para viver intensamente

Outubro chegou. E traz consigo abundante quantidade de temas e sugestões para vivermos e reforçarmos nossa espiritualidade. Ele se abre com a festa de Santa Teresinha, que tão jovem amadureceu para a vida eterna, sendo mais tarde indicada como patrona das missões, ela que viveu atrás dos muros de um mosteiro, mas cujo coração não tinha fronteiras, melhor dizendo, “suas fronteiras era o amor”.

O despertar que este mês provoca em nós se detém na festa dos Anjos Custódios, celebrada no dia 2 de outubro. É verdade, o Anjo da Guarda anda um tanto esquecido, mas o esquecimento deve ser atribuído a nós e não à misericórdia de Deus, representada pelo Anjo da Guarda. Ele é a mão protetora de Deus a nos acompanhar pelas estradas da vida.

No dia 3, eis que somos conduzidos às terras potiguares onde deram a vida pela Eucaristia os bem-aventurados padres André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, junto com seus companheiros, todos mártires. Ocasião para refletirmos sobre as consequências de quem vive a fundo o mistério da Eucaristia.

E no dia seguinte? Nada mais nada menos que um dos santos mais simpáticos e populares: Francisco de Assis. Bem entendido, ele nos desperta para o grande problema da ecologia. Admiração e louvor por um lado, por outro, compromisso que preserva o maio ambiente e respeita os animais.

Caminhando mais um pouco. Dia 7: Nossa Senhora do Rosário, devoção popular que santificou a vida de tantas pessoas e suas famílias. Lembro-me da minha infância, a reza do terço todas as noites antes do jantar, de joelhos, em latim...

... da grande festa da Mãe e Padroeira de nosso País, que tanta paz de espírito, força e esperança suscita no coração de milhões de brasileiros. Para ela, com certeza, todos nós somos suas crianças prediletas.

Lá adiante, depois de passarmos por São Calixto, no dia 15 espera-nos outra Teresa, a Teresa de Jesus, doutora da Igreja, que nem nos deixa respirar, pois é vizinha de Edviges,

amiga e protetora nos momentos de dúvidas e dívidas... Ela reparte a festa desse dia com Margarida Maria Alacoque, apaixonada pelo Sagrado Coração de Jesus.

Mal passamos da metade do mês, eis Santo Inácio de Antioquia (17), corajoso mártir, que nos revela: Amanhã é dia de São Lucas, evangelista. No seu Evangelho nos mostra o rosto ecumênico de Jesus, preparando-nos para, no domingo, celebrarmos o Dia Mundial das Missões, para o qual convergem todos os corações e o olhar esperançoso de quem acredita no sonho de um só rebanho e um só Pastor.

Não bastassem todos esses santos e santas, esperam-nos São João Paulo II (22), São João de Capistrano (23), Santo Antônio Maria Claret (24), São Simão e São Judas (28). Como se vê, não nos faltam santos, falta-nos sermos como eles, talvez, falta-nos ser mais santos.

Pe. José Bortolini


Agosto - 2018

Santa Suzana, nossa padroeira

Ter Santa Suzana como padroeira, gostar dela, invocá-la e procurar seguir seus passos é de certa forma como caminhar na contramão do trânsito humano. Pensemos nessa forte menina, virgem e mártir, ou se quisermos, mártir por causa da sua escolha de viver a virgindade.

Cada vez mais precocemente os adolescentes se entregam entregando o próprio corpo. E as insinuações são cada vez mais fortes e envolventes, de modo que seguir a Jesus, realizando no próprio corpo aquilo que nos leva à santidade e à salvação se torna cada vez mais difícil e perigoso. É de fato como andar na contramão da história. E todos sabemos que ninguém chega à santidade sem o próprio corpo.

Outra coisa que pode chamar nossa atenção é o

respeito que Deus nutre por nossas escolhas boas. Suzana podia casar, tornar-se imperatriz e viver santamente o matrimônio e o exercício do poder que o cargo lhe conferia, mas escolheu seguir a Jesus buscando a santidade num corpo virgem. E, reconheçamos, isso não era e não é fácil. Mas Deus respeitou a opção que ela fez, porque era uma escolha que se espelhava em Jesus, casto, puro e virgem. E assim ela alcançou o prêmio dos vencedores, vencendo a morte e conquistando a vida eterna.

Papa Francisco nos abriu os olhos para vermos que há milhões de cristãos sendo martirizados hoje. E sem sombra de dúvida, o martírio não é coisa que se deva buscar afoitamente, nem de modo algum. A nossa

bandeira deve ser a da liberdade em escolher o modo de ser cristão e de agradar a Deus. Onde há mártires não há liberdade, não há justiça.

E o que Suzana diria aos jovens que se perdem nas baladas da noite? Talvez mostraria que valeu a pena arriscar a vida para manter sua integridade; que o doce de hoje pode ser o amargo de amanhã; que não se colhe aquilo que não foi plantado; que valeu a pena alvejar as próprias vestes no sangue do Cordeiro, como afirma o Apocalipse. E continuemos a pedir-lhe: Santa Suzana, virgem e mártir, olhai nossa juventude e intercedei por ela ao Senhor!

Pe. José Bortolini


Agosto - 2018

Mês Vocacional

Ao longo do ano, nosso calendário litúrgico nos convida a celebrar meses temáticos. Chamam-se assim os meses nos quais um tema ocupa continuamente nossa atenção. Por exemplo, outubro = mês missionário; setembro = mês da Bíblia; agosto = mês vocacional, porque no início celebrava-se a vocação sacerdotal, motivada pela memória litúrgica de São João Maria Vianney, padroeiro dos sacerdotes.

Com o tempo, o Espírito Santo nos abriu os olhos para ver melhor a realidade vocacional, ou seja, que há inúmeras vocações e que todo ser que vem a este mundo recebe de Deus uma vocação ou chamado. Por isso, agosto é mês vocacional porque deseja a cada semana celebrar um tipo de chamado: à vocação sacerdotal, à vocação matrimonial, à vocação consagrada na vida religiosa e à vocação leiga.

Embora às vezes seja difícil encaixar esses temas na homilia e outros momentos, é oportuno levar a sério a questão vocacional, pois todos são contemplados por Deus com uma espécie de vocação. Ninguém vem a este mundo para ver a banda passar e não fazer coisa alguma para tornar-se melhor e ajudar a humanidade a crescer. E mais: toda vocação dada por Deus, na diversidade de dons, é caminho de santidade e caminho para alcançarmos a salvação.

Além disso, é importante considerar que a vocação recebida é prova de que Deus nos ama e faz questão de contar conosco em tudo aquilo que faz parte da nossa vocação específica. De modo que em cada vocação acontece aquilo que alguém dizia: “Aquele que te criou sem ti não te salvará sem ti”.

CUma forma de agradecer a Deus o dom da vocação é esta: viver alegre e agradecidamente a própria vocação, pois Deus – que tudo conhece – deu-nos o melhor modo e o mais adequado caminho para imitar algo de Jesus, realizando assim a nossa vocação: alegres por ser padres, alegres e gratos por ser pais, alegres e gratos por ser consagrados etc... Como é triste ver uma pessoa vocacionalmente triste. E como faz bem encontrar alguém que vive com alegria e gratidão o dom da vocação que Deus lhe deu.

Pe. José Bortolini


Junho - 2018

Copa do Mundo e espiritualidade

Durante um mês, nesta pátria de chuteiras, a maioria dos brasileiros estará respirando futebol, torcendo, sofrendo e – esperamos – comemorando e vibrando. E você, que se interessou pelo título deste texto, poderá perguntar se seu autor não pirou de vez, estimulando de certa forma a alienação, inimiga da espiritualidade.

Escolhi esse tema não só por ser atual, mas sobretudo para que percebamos ser possível cultivar a espiritualidade a partir do cotidiano, daquilo que acontece sob nossos olhos.

É possível associar Copa do Mundo (esporte, atletismo etc.) com espiritualidade. Quem nos ensina isso é o apóstolo Paulo, nascido e educado na cidade de Tarso, na Cilícia, grande metrópole que o viu nascer e crescer.

A grande cidade de certo modo ensinou a Paulo como viver a espiritualidade a partir dos acontecimentos da metrópole.

Paulo é homem das grandes cidades. Jesus e os apóstolos eram pessoas das aldeias, e as imagens que Jesus usava, sobretudo nas parábolas, eram tiradas da vida no campo e nas vilas.

Em suas cartas, Paulo emprega imagens da grande cidade para estimular o crescimento espiritual dele e das suas comunidades. É assim, por exemplo, que na carta aos Filipenses ele fala do atleta que corre sem parar para alcançar a meta e o prêmio. O mesmo tema, associado a outros, se encontra no final da segunda carta a Timóteo.

Certamente Paulo viu na sua querida Tarso as disputas do pugilismo, e disso se aproveitou para falar da constância e perseverança, treinamento que comporta disciplina e abstenção. Pois bem, ele usa abundantemente essas imagens para falar da vida espiritual do cristão.

Lanço um desafio para você: tomar uma das cartas de Paulo (por exemplo Filipenses) e ir anotando as passagens em que o texto bíblico está construído sobre uma metáfora ou imagem do desporto daquele tempo. E você terá a oportunidade de ver que espiritualidade e Copa do Mundo não são realidades estranhas uma à outra. E perceberá outra coisa: Deus nos fala de si e de nós com a linguagem do dia a dia. Tente, e se surpreenderá.

Pe. José Bortolini


Abril - 2018

Que tal viver continuamente a espiritualidade pascal?

O Evangelho segundo São João está repleto de surpresas que somente com o tempo a ele dedicado é que descobrimos. Uma dessas surpresas se refere ao dia da ressurreição e sua repercussão na vida das pessoas e na história.

Jesus ressuscitou no domingo. É o novo sol, que inaugura um dia sem fim, realizando aquilo que se lê logo no início do Evangelho, ou seja, o inútil esforço das trevas a fim de apagar a luz. Não conseguem. E nós cantamos: “A luz resplandeceu em plena escuridão. Jamais irão as trevas vencer o seu clarão”.

O Evangelho segundo São João desenvolve abundantemente o tema da vitória da luz sobre as trevas, mas é no final que a ideia é reforçada vigorosamente. A partir do capítulo 20 narra-se a ressurreição de Jesus, o novo Sol, que vence definitivamente toda espécie de trevas.

Lendo com atenção esse capítulo, nota-se que os acontecimentos aí narrados se dão sempre de domingo: a ressurreição do Senhor, a efusão do Espírito Santo no entardecer desse mesmo dia, o episódio de Tomé, oito dias depois, ou seja, novamente em dia de domingo etc. A ideia de João é muito clara: A vitória de Jesus abre um novo dia de luz que as trevas não conseguem apagar.

Isso nos remete imediatamente à espiritualidade que o tempo pascal espera ser vivida, uma espiritualidade de vitoriosos, que não se deixam abater por nada nem por ninguém. A Liturgia detectou essa orientação e nos ensina que todo domingo, em cada celebração da Eucaristia revivemos a vitória da vida sobre a morte, ou seja, cada domingo é Páscoa. Mas o Evangelho segundo São João quer que sintamos e vivamos mais e mais,

chegando a nos sugerir que em cada amanhecer, quando acordamos para as tarefas cotidianas, digamos a nós mesmos: “Quero viver este dia com a consciência pascal. Hoje, como ontem, como amanhã, é Páscoa em minha vida, e tudo o que penso e faço precisa refletir a luz da Páscoa de Cristo”.

Portanto, seja qual for o dia do ano, eu e você estamos vivendo e revivendo a Páscoa do Senhor. Aqueles que se arrastam pela vida e fazem dela uma ladainha de lamentações desconhecem a força da espiritualidade pascal. Mesmo quando chegar o dia de nossa partida deste mundo, queiramos estar celebrando a Páscoa. E dizer, como disse uma santa, “não morro, entro na vida”.

Pe. José Bortolini


Fevereiro - 2018

Quaresma e Campanha da Fraternidade

Elementos para a espiritualidade.

De modo geral, o cristão não avança em sua caminhada sem ser alimentado por uma espiritualidade, seja ela qual for. É como o combustível num carro: faltando, ficamos parados.

Ao longo do Ano Litúrgico encontramos tempos fortes - como o Advento e a Quaresma, por exemplo - que são como o posto de combustível no qual nos abastecemos para a viagem.

Não bastasse isso, há várias décadas - mais de meio século - em nosso País o tempo forte da Quaresma (com seus grandes temas e gestos que desaguam na Páscoa) vem acompanhado por um aditivo conhecido como Campanha da Fraternidade.

O objetivo da Campanha da Fraternidade é iluminar os gestos fundamentais desse tempo litúrgico: a oração, o jejum, a esmola.

Neste ano, a Campanha da Fraternidade traz profundos desafios, sintetizados no seu tema e no lema. O tema é este: "Fraternidade e superação da violência", e o lema é tirado de Mateus 23,8: "Em Cristo somos todos irmãos". Tema e lema atualíssimos, se levarmos em conta que o País vive praticamente uma guerra civil camuflada. Mas as mortes oriundas das drogas, da corrupção, do trânsito, do preconceito etc. estão aí. Porém, não é só a violência brutal que mata. A violência se aninha e prospera na indiferença, no preconceito e em tudo o que não nos aproxima como irmãos e irmãs.

A Quaresma é caminho que desemboca na Páscoa. Mas não podemos esquecer que Jesus foi vítima do pior preconceito e da mais cruel violência, feita de palavras e de gestos. Caminhar com ele e do jeito dele neste tempo favorável requer lucidez e coragem. Hipocritamente, comovemo-nos diante de um bichinho (nosso País soma 55 milhões de cães de estimação) talvez para camuflar nossa violência verbal e de comportamento, igualmente mortal.

Nesta Quaresma, iluminados pela Campanha da Fraternidade, caminhemos para a Páscoa da vitória da vida contra todas as suas ameaças.

Pe. José Bortolini


Fevereiro/Março - 2017

Quaresma: tempo de reencontro

Dizem os peritos em Liturgia que não é bom considerar a Quaresma como tempo isolado, pois isso diminui seu sentido. É melhor considerá-la como parte de um ciclo, o Ciclo da Páscoa, que compreende Quaresma, Páscoa e Pentecostes. E isso é interessante do ponto de vista da nossa caminhada de fé. Quaresma sem Páscoa não faz sentido; Páscoa sem Pentecostes acaba incompleta e empobrecida.

O que são, portanto, esses 40 dias que dão nome a esse tempo? São início de caminhada que culmina na Páscoa e recebe a coroa no Pentecostes. São como os 40 dias de deserto na vida de Jesus: dias de profundo encontro consigo mesmo, com Deus no mistério pascal e encontro com o Espírito que anima e sustenta a caminhada da Igreja.

Quaresma é tempo de encontro consigo mesmo, com a realidade que somos. E seu início nos garante que somos pó. No deserto de sua Quaresma, Jesus venceu a tentação de pensar somente em si, nos próprios interesses (tentação de transformar as pedras em pão); superou a tentação de pôr Deus a serviço de seus caprichos (tentação de atirar-se do ponto mais alto do Templo de Jerusalém); venceu a tentação de tudo possuir, ser dono do mundo, mesmo que para tanto devesse ajoelhar-se em adoração a Satanás.

Quaresma, portanto, é tempo de reencontrar-nos conosco mesmos naquilo ao qual somos chamados e para o qual fomos feitos, à semelhança de Jesus vencedor das tentações.

Além disso, na Quaresma os católicos do Brasil refletem sobre o tema da Campanha da Fraternidade a fim de agir em sintonia com o projeto de Deus. Neste ano, em continuidade com o ano passado, nos são propostas reflexões sobre os biomas que compõem nosso País. Destruí-los é destruir-nos; preservá-los é conservar e proteger nossa casa comum. Bioma é um território – por exemplo a Amazônia, o Cerrado etc. – caracterizado por vegetação, clima, fauna, flora e população iguais. Que tal conhecer mais essas realidades que formam nossa casa comum? Não seria também isso um reencontrar-se?

Pe. José Bortolini


Novembro/Dezembro - 2016

Acolhida: espiritualidade de Natal

O Evangelho de João (1,11) afirma que Jesus “veio para o que era seu e os seus não o receberam”. Ou seja, Jesus foi rejeitado justamente por aqueles que eram parte do grupo mais próximo a ele: parentes e membros da mesma raça. Evidentemente, o Evangelho de João está se referindo à rejeição do Jesus adulto, pois nada menciona a respeito da infância. Isso é explicitado ao longo desse Evangelho.

Porém, Lucas fala da rejeição de Jesus antes mesmo de nascer. Ele associa seu nascimento a um recenseamento de todo o Império Romano, fato que força José a ir a Belém, sua terra natal, para recensear-se juntamente com sua esposa, Maria, prestes a dar à luz. Lucas narra: “Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o parto, e ela deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia um lugar para eles na sala” (2,6).

Uma nota na Bíblia de Jerusalém explica que a palavra grega traduzida por “sala” dá a entender que se tratava não de um albergue, mas de casa pertencente aos parentes de José, que era natural de Belém. Eles, então, tiveram de abrigar-se no “puxadinho” do lado de fora da casa dos parentes de José, lugar reservado aos animais.

E assim se completa a rejeição da qual fala o Evangelho de João. De sorte que o oposto de rejeição, ou seja, o acolhimento, se torna a atitude fundamental para a espiritualidade do Natal.

Natal cristão, portanto, é acolhimento. Nós dizemos que onde come um comem dois; há sempre um cantinho para mais alguém que chegou de repente. Mas se o coração das pessoas é apertado ou fechado, a acolhida não acontece.

A acolhida começa dentro da gente, e a rejeição também. Aquilo que vivemos por dentro se manifesta em atos por fora. Custava para os parentes de José “aconchegar-se” um pouco mais para acolher o casal que chegou de repente? Certamente dentro da sala cada um zelava pelo próprio espaço, e assim zelando acabam perdendo a grande oportunidade de acolher o Salvador.

Façamos da celebração deste grande evento, um momento de, em família, ao redor do presépio, cantarmos com alegria jubilosa e renovarmos nossa confiança nas promessas que nosso Salvador veio trazer-nos...

Recordo o tempo de criança, quando pernoitavam visitas em casa: nós, crianças, íamos dormir na sala, cedendo a cama para as visitas. E sem reclamar; pelo contrário, fazendo festa e também bagunça. Era acolhida festiva. Era espiritualidade de Natal.

Pe. José Bortolini